sexta-feira, 29 de abril de 2011

Debaixo d'água - Arnaldo Antunes


Debaixo d'água tudo era mais bonito

Mais azul, mais colorido

Só faltava respirar

Mas tinha que respirar

Debaixo d'água se formando como um feto

Sereno, confortável, amado, completo

Sem chão, sem teto, sem contato com o ar

Mas tinha que respirar

Todo dia

Todo dia, todo dia

Todo dia

Todo dia, todo dia

Debaixo d'água por encanto sem sorriso e sem pranto

Sem lamento e sem saber o quanto

Esse momento poderia durar

Mas tinha que respirar

Debaixo d'água ficaria para sempre, ficaria contente

Longe de toda gente, para sempre no fundo do mar

Mas tinha que respirar

Todo dia

Todo dia, todo dia

todo dia

Todo dia, todo dia


Debaixo d'água, protegido, salvo, fora de perigo

Aliviado, sem perdão e sem pecado

Sem fome, sem frio, sem medo, sem vontade de voltar

Mas tinha que respirar

Debaixo d'água tudo era mais bonito

Mais azul, mais colorido

Só faltava respirar

Mas tinha que respirar

Todo dia

(só) Agora - Arnaldo Antunes

Agora que agora é nunca
Agora posso recuar
Agora sinto minha tumba
Agora o peito a retumbar
Agora a última resposta
Agora quartos de hospitais
Agora abrem uma porta
Agora não se chora mais
Agora a chuva evapora
Agora ainda não choveu
Agora tenho mais memória
Agora tenho o que foi meu
Agora passa a paisagem
Agora não me despedi
Agora compro uma passagem
Agora ainda estou aqui
Agora sinto muita sede
Agora já é madrugada
Agora diante da parede
Agora falta uma palavra
Agora o vento no cabelo
Agora toda minha roupa
Agora volta pro novelo
Agora a língua em minha boca
Agora meu avô já vive
Agora meu filho nasceu
Agora o filho que não tive
Agora a criança sou eu
Agora sinto um gosto doce
Agora vejo a cor azul
Agora a mão de quem me trouxe
Agora é só meu corpo nu
Agora eu nasco lá de fora
Agora minha mãe é o ar
Agora eu vivo na barriga
Agora eu brigo pra voltar
Agora
Agora
Agora

sábado, 2 de abril de 2011

Para quem gosta de poesia

Para quem gosta de poesia sem rodeios nem floreados. E não se choca ou indigna com a língua portuguesa.


Ó caralho! Ó caralho!

Quem abateu estas aves?
Quem é que sabe? quem é
que inventou a pasmaceira?
Que puta de bebedeira
é esta que em nós se vem
já desde o ventre da mãe
e que tem a nossa idade?

Ó caralho! Ó caralho!

Isto de a gente sorrir
com os dentes cariados
esta coisa de gritar
sem ter nada na goela
faz-nos abrir a janela.
Faz doer a solidão.
Faz das tripas coração.

Ó caralho! Ó caralho!

Porque não vem o diabo
dizer que somos um povo
de heróicos analfabetos?
Na cama fazemos netos
porque os filhos não são nossos
são produtos do acaso
desde o sangue até aos ossos.

Ó caralho! Ó caralho!

Um homem mede-se aos palmos
se não há outra medida
e põe-se o dedo na ferida
se o dedo lá for preciso.
Não temos que ter juízo
o que é urgente é ser louco
quer se seja muito ou pouco.

Ó caralho! Ó caralho!

Porque é que os poemas dizem
o que os poetas não querem?
Porque é que as palavras ferem
como facas aguçadas
cravadas por toda a parte?
Porque é que se diz que a arte
é para certas camadas?

Ó caralho! Ó caralho!

Estes fatos por medida
que vestimos ao domingo
tiram-nos dias de vida
fazem guardar-nos segredos
e tornam-nos tão cruéis
que para comprar anéis
vendemos os próprios dedos.

Ó caralho! Ó caralho!

Falta mudar tanta coisa.
Falta mudar isto tudo!
Ser-se cego surdo e mudo
entre gente sem cabeça
não é desgraça completa.
É como ser-se poeta
sem que a poesia aconteça.

Ó caralho! Ó caralho!

Nunca ninguém diz o nome
do silêncio que nos mata
e andamos mortos de fome
(mesmo os que trazem gravata)
com um nó junto à garganta.
O mal é que a gente canta
quando nos põem a pata.

Ó caralho! Ó caralho!

O melhor era fingir
que não é nada connosco.
O melhor era dizer
que nunca mais há remédio
para a sífilis. Para o tédio.
Para o ócio e a pobreza.
Era melhor. Concerteza.

Ó caralho! Ó caralho!

Tudo são contas antigas.
Tudo são palavras velhas.
Faz-se um telhado sem telhas
para que chova lá dentro
e afogam-se os moribundos
dentro do guarda-vestidos
entre vaias e gemidos.

Ó caralho! Ó caralho!

Há gente que não faz nada
nem sequer coçar as pernas.
Há gente que não se importa
de viver feita aos bocados
com uma alma tão morta
que os mortos berram à porta
dos vivos que estão calados.

Ó caralho! Ó caralho!
Já é tempo de aprender
quanto custa a vida inteira
a comer e a beber
e a viver dessa maneira.
Já é tempo de dizer
que a fome tem outro nome.
Que viver já é ter fome.

Ó caralho! Ó caralho!

Ó caralho!
Joaquim Pessoa - Poema Temperamental