sábado, 24 de dezembro de 2005

Do poder da palavra, entre outras coisas...

"Roubado" ao blogouve-se, de João Paulo Meneses

Às 6 datarde, no meiodo tráfego, as notíciasda rádio repetiam a música desolada das palavras de sempre: despedimentos, corrupção, desemprego, economia, eleições
E números, números.
De súbito, duas pequenas palavras interromperam por um momento, como um sobressalto de calorosa vida, a rotina monocórdica da amargura e da decepção, dois insólitos diminutivos perturbando a indiferença noticiosa antes de serem tragados pela obscuridade de mais percentagens e mais números. Uma voz lia o boletim clínico sobre o estado de saúde da bebé vítima de maus-tratos internada no Hospital Pediátrico de Coimbra e, inesperadamente, a frieza das designações médicas vacilou e a voz (a da pediatra Jeni Canha) tornou-se de repente desamparadamente próxima e humana: a menina está "rosadinha" e já reclama "colinho". As palavras são seres furtivos, capazes de sentidos onde não alcançam, pobres deles, os dicionários. A palavra "amor", por exemplo, não precisa de ser pronunciada para significar, e (como se temesse mostrar-se) revela-se quase sempre sob a forma de outras palavras ou de silêncio. O seu poder é enorme e ninguém nem nada lhe está imune (nem um boletim clínico). É, como diz Sócrates (S. Paulo também o diz), um saber. Não parecendo, aqueles dois diminutivos são termos técnicos de uma ciência que não se aprende em nenhuma universidade e apenas está ao alcance dos melhores de nós.
Manuel AntónioPina, in JN 21.12.2005

Da minha parte, fico sem palavras. É difícil ler um texto num jornal que nos transmita algo de tão poderoso. Este (para mim) é perfeito. Por isso, calo-me. Acho que é o melhor que faço.

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